Organizei minha cama, abri o cadeado da minha gaveta e peguei minha garrafa de contreau. Eu já estava com o copo de vidro. Fechei a porta do quarto com cuidado para não fazer barulho. Andei com passos soltos até a recepção, na verdade, eram 6 passos. Puxei uma banqueta, coloquei a garrafa e o copo em cima da mesa. Passei a mão no mousse e comecei a procurar algum programa para escrever. Eu não parava de reclamar comigo mesma, como eu poderia não ter trazido meu notebook ? A internet fechava as 23 horas e eu não teria nada para fazer o resto da noite, e depois do que havia acontecido hoje, bem, eu precisava ficar horas liberando energia. Eu precisava do Word 97.
Abri a garrava com cuidado, observei o rótulo. Aquele vidro amber era tão belo, parecia um grande caramelo. Despejei o liquido no copo transparente, e o liguido também era transparente. Eu não sabia, por tantas vezes eu olha, observo, e percebo tão diferente do que realmente é. Bebi um primeiro gole, senti o gosto alaranjado descer por minha garganta esquentando. A sensação não foi boa, senti-me mais culpada e mais pesada. E ainda não achava o programa para escrever.
Olhei para o moço da recepção e perguntei se ele sabia onde ficava, como abria. Eu nem sei em qual língua falei. Sei que ele levantou-se com bastante boa vontade e veio ajudar-me. Eu não observei muito seu rosto, eu apenas senti o calor de seu corpo quando passou o braço por detrás de mim e olhou bem de perto o monitor. Tinha o cabelo com bastante brilho e castanho. Era um pouco gordinho na cintura e era leve ao andar. Eu não consegui ver mais. Eu queria transar com ele, eu sempre quero ; mesmo que eu não vá. Nem é por mim, é mais uma vingança contra algo que eu ainda não defini.
Lembrete : definir o que me traz este sentimento de vingança.
Ele voltou para sua cadeira atrás do pequeno balcão no canto da sala. Era um apartamento antigo de 4 quartos todos com varanda. Era bem moderno por dentro, e havia sido reaberto há apenas 2 meses. A presença dele evitava que eu escrevesse. Afinal de contas, eu precisava escrever sobre a vida, sobre os primeiros dias na França. Não estava muito interessada em nenhuma distração. Muito mais depois do que havia acontecido hoje. Eu tomava mais um gole do meu Contreau. Eu sentia que ele me olhava. Ele era um ruído na sala.
Bebi mais um gole da bebida e comecei a sentir azia. E nem importava, eu não pararia de beber por uma razão tão pequena. Não era só porque eu estava sendo corroída por dentro que deixaria meu olhar cair. A corrosão geralmente traz o metal por baixo da camada negra de solidão. Escolhi deixar corroer.
O menino chamou-me e disse que ser proibido beber dentro do albergue. Estava nas regras. Ele foi gentil e perguntou se eu havia lido. Quem lê as regras ? eu sei, eu deveria ter lido. De qualquer forma, esta foi a primeira vez a beber dentro de um albergue, a primeira vez a precisar ser corroída. Eu levantei levemente, já um pouco anestesiada pelo alcool ; enchi mais o copo de liguido transparente como água e guardei a garrafa em minha gaveta com pequenino cadeado. Voltei para o computador, olhei bem em seus olhos, então vi, eles eram verdes como os meus. Ou até mais. E eu disse :
- Eu só bebo água – confesso ter sido um pouco cínica, mas do contrário, não seria eu.
Quando chegou o recepcionista que o substituiria para o próximo turno. Ele levantou e começou a falar em espanhol com o outro. Esta lingua complicada tão próxima do português, e eu não compreendo. Talvez eu nem queira. Ele, o nome dele é Bruno, encostou no balcão pelo lado de fora e começou a dizer que queria beber uma cerveja, que não queria ir sozinho, que não coseguia dormir, que havia ficado vendo filme até às 4 horas da manhã do dia anterior. Que, que, que, que. Eu nem mesmo virava o corpo para saber. As vezes, olhava de soslaio e percebia serem para mim aquelas observações. Pouco importava, ele era mais um tentando passar um charme, e sim, a rotatividade ali deveria ser bem alta. Muitas garotas bonitas, todas querendo emoções e histórias para contar na volta para casa. Eu sabia serem iscas aquelas palavras em uma voz engraçada sem cadência. E eu estava escrevendo sobre minha história no Word 97 e não precisava de nenhuma distração desnecessária.
Ele foi embora, o recepcionista pediu para eu desligar o computador. E eu fiquei sozinha no meu quarto escuro e em silêncio. Senti falta do ruído. Ele era o ruído. E agora tudo estava calmo. Como eu queria meu MacBook. Aconcheguei-me na cama. Era tão confortável, o travesseiro tão macio. Fui dormindo e esquecendo, esquecendo e dormindo até não saber separar os dois.
E eu dormi até não poder mais manter os olhos fechados. Era uma sina. E eu precisava curar-me dela. Levantei-me, tomei um banho bem demorado e sai para dar umas voltas por Barcelona ; Barça, como dizem aqui. Fazia um frio agradável, e as pessoas estavam bem agasalhadas e eu contentava-me com um casaco leve. O pesado ia na mão, ou bem aberto para ventilar. Eu começava a entender que estava em Barcelona. E por que sofrer por estar ali ? no dia anterior almadiçoei estar ali.
Penso que durante o sono, deixei todas as dores e mágoas em algum mundo distante, bem longe da minha realidade. Eu andava livre pelas ruas da cidade. Eu estava em silência mesmo com todo aquele som das pessoas falando e de tudo acontecendo em volta. Mas não havia ruído. Eu sentia falta, por alguma razão bem contraditória, do ruído. E resolvi voltar para o albergue mais cedo.
Abri a porta pesada daquele apartamento e vi o ruído ali sentado, rindo e conversando com todos. Aquele quadro indiano na parede da entrada fazia-me entender o nome : Karma Hostel. Eu não sabia se este « Karma » era sexual, energia ou pura perseguição.
A srta está viajando!
ResponderExcluirhahaha.
anekas, tudo de bom pra tí, aonde quer que vc esteja, pq tu vive mudando.